O epitáfio de um sapato velho

quinta-feira, 8 de outubro de 2009 , Posted by Danúbio at 14:31

As pessoas dizem que sentem quando vão morrer; não sei se com sapatos funciona da mesma forma. Já faz alguns dias que tenho percebido isso: o fim. Nem tanto pelos buracos no solado ou as rachaduras no couro ou o cadarço esfarrapado, mas meu dono tem se afastado de mim. Do mais querido do armário fui trocado por um mocassim zero quilometro, desses que chegam a cegar de tanto brilho.
Dessa forma, antes de ser abandonado num canto de parede sujo e frio e começar a ser consumido por fungos impiedosos, preciso que saibam de mim, que fui um sapato espetacular, feito com um couro italiano finíssimo, o principal motivo de uma vida longa e saudável. Tenho primos chineses que não vivem nem dois meses. Garanti conforto e maciez aos pés de meu dono; entretanto, nunca fui muito recompensado por isso, pelo contrário, literalmente andei por caminhos tortuosos: lama, calçadas escaldantes e toda sorte de sujeiras que prefiro nem citar e, meu Deus! Me digam quem inventou o tal do chiclete? Os humanos têm câncer, nós temos chicletes, a maior praga que foi inventada. Também tenho trauma mortal de dias chuvosos e de fumantes. Meu dono é um desses e me usa para apagar pontas de cigarros. Poderia odiá-lo por isso, mas quer saber? Minha vida foi chocante, dessas que dariam facilmente um romance ou um conto, por isso o quero tanto. Ah! Tenho um irmão gêmeo. Ele é carrancudo, de poucas palavras. Ainda não absorveu a dura realidade. Está inconformado com a vida, não suporta que tenha sido largado e já anda arquitetando planos para tornar um inferno a vida do novo mocassim. Eu não, estou em paz, tranquilo. E, antes que a podridão me tome, que meu epitáfio seja: Amou cada passo de sua vida.

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