Ele

Posted by Danúbio on quarta-feira, 5 de maio de 2010 , under | Estiveram aqui... (2)



Parou de escrever. Naquela cidade de ruas tão vazias ele se abandonou. Nunca mais escreveu. Caneta, lápis e papel foram esquecidos num canto da escrivaninha. Trancado em seu quarto ele agora ruía, como uma árvore morta que solta aos poucos suas cascas, ele apagava suas lembranças uma a uma e procurava propositalmente esquecer o nome e rosto daqueles que fizeram parte dele.

De Carne e Osso

Posted by Danúbio on , under | Estiveram aqui... (1)



− De que são feitas as pessoas?
− De carne e osso.
− Mas simples assim? Então onde fica a raiva nas pessoas, na carne ou no osso?
− Mas por que a raiva agora?
− Onde fica?
− Nem sei. Só sei que nem é na carne nem é no osso. Mas por que a raiva agora?
− Por você, porque não sabe me dizer onde fica a raiva nas pessoas.
− Fica em qualquer lugar entre o coração e a cabeça.
− No nariz?
− Sim.
− Bom saber. Sei agora que parte do seu corpo quebrar quando sentir raiva de mim.

Um ano radioativo

Posted by Danúbio on terça-feira, 29 de dezembro de 2009 , under | Estiveram aqui... (0)



Para minha humilde vida, da forma mais particular possível, esse ano não foi fácil mesmo.
Quero tratá-lo como lixo radioativo, desses que ficam imersos a centenas de metros de profundidade e que contaminam ao menor contato.

A Invasão do Bispo

Posted by Danúbio on terça-feira, 22 de dezembro de 2009 , under | Estiveram aqui... (0)



Nos últimos dias tenho sido violado, ou melhor, isso soou horrível, tenho sido incomodado pela programação matinal da rede Record de uma forma um tanto peculiar. Como costumo varar a noite escrevendo ou cochilando em frente a tv, meu sono costuma ir até meio-dia. Naturalmente tudo se altera no meu Fabuloso Relógio Biológico. Geralmente tomo café pra depois de dez minutos almoçar, isso tem me rendido quilos extras, muitos quilos extras. Voltando
Como meu sono não é tão profundo pela manhã e minha mãe é a melhor expectadora do bispo, e isso se mede pela altura do volume  da TV, costumeiramente as personagens desse exemplar-canal-de-televisão, como já diziam os evangélicos, invadem meus sonhos, se misturam a eles. Bom que já acordo bem informado dos acontecimentos, entretanto, fica feia a coisa quando começa o Hoje em Dia, programa apresentado por mais de um cento de pessoas que vai das 9 da manhã até nem sei. Além das receitas que faço ao lado de meu amigo Edu Guedes, dou broncas exemplares nos demitidos do reality show do canal, que passam a semana pintando por lá. Hoje mesmo, bati boca com Xuxa, ex-nadador brasileiro, pela sua péssima atuação na Fazenda. Vou pedir a direção do programa que meu nome seja inserido nos créditos da programação e ao bispo pedirei pela minha inclusão na sua Fabulosa Folha De Pagamento. Afinal, sonhos são ainda propriedade privada.

A paixão de Elisa

Posted by Danúbio on segunda-feira, 21 de dezembro de 2009 , under | Estiveram aqui... (0)



Seus sinais. Foi por eles que me apaixonei primeiro, especialmente um que carrega no rosto, quase nulo, perdido na palidez de sua pele e que some completamente quando ri aquele meio sorriso de quem sabe sofrer. E de todas os outros que se derramam por suas costas e pernas e pés.
Depois me apaixonei pelo seu cheiro, pelo cheiro quente e sujo de seu quarto e lençóis e edredom. pelo suor dos fins de tarde, pelos talos de grama presos ao seu pescoço.
Depois me apaixonei pela sua fome incontrolável, pela forma como esvaziava minha geladeira e esfolava meios armários à procura de comida.
Depois me apaixonei pela sua voz rouca, cheia de notas estranhas, de indecisão, a mesma de quem começa a esquecer da infância para viver as intensidades da juventude. Pelo barulho de seu sorriso e de como precisava sempre sorrir fosse das desgraças dos outros ou de sua própria.
Depois me apaixonei pelos seus pais, pelos seus irmãos e irmãs, pelos cômodos de sua casa, pela sala e cozinha e quartos.
Depois me apaixonei pela sua falta vazia e mortal, pela sua presença de sonhos e sorrisos.
Quando decidi me apaixonar por você já nem mais existia, nem eu nem você.

Nunca acreditei que pudesse piorar

Posted by Danúbio on , under | Estiveram aqui... (0)



As noites de Natal, por incrível que possa parecer, sempre foram de solidão, dessas faltas físicas mesmo. De pessoas de carne e osso. Sempre tive muitos amigos, não posso reclamar, mas na noite de Natal desapareciam todos. As ceias eram pra ser partilhadas em família, e eram rígidos com isso, só parentes. Nada de pessoas de fora, fossem os melhores amigos. Mesmo que no outro dia amanhecessem em meu portão pra contar dos porres que foram testemunhas ou protagonistas, dos presentes, dos tios alcoólatras, das tias sapatões.
Minha companhia nunca passou de duas ou três garrafas de vinhos, um pedaço de provolone roubado, uma carteira de cigarros Marlboro e Elis se rasgando bem baixinho no som, uma chuva fina e constante que varava a noite e o quarto escuro, que completava a cena. Ali mesmo bebia, chorava e dormia pra acordar ferido de manhã. Tenho motivos legítimos pra desgostar dessa data.
Nunca acreditei que pudesse piorar.
Nesse natal nem vinhos nem queijos, não tenho de quem ganhá-los ou de onde roubá-los. Elis se perdeu na mão de algum vizinho cruel não acostumado a devolver cd´s. Sem quarto escuro também, e apesar do calor que faz aqui, sei que nem a chuva virá. Será mesmo uma noite de cerveja e cigarros. E o pior: não estarão lá, de manhã, no outro dia, batendo no meu portão pra contar dos porres que foram testemunhas ou protagonistas, dos presentes, dos tios alcoólatras, das tias sapatões.

O epitáfio de um sapato velho

Posted by Danúbio on quinta-feira, 8 de outubro de 2009 , under | Estiveram aqui... (0)



As pessoas dizem que sentem quando vão morrer; não sei se com sapatos funciona da mesma forma. Já faz alguns dias que tenho percebido isso: o fim. Nem tanto pelos buracos no solado ou as rachaduras no couro ou o cadarço esfarrapado, mas meu dono tem se afastado de mim. Do mais querido do armário fui trocado por um mocassim zero quilometro, desses que chegam a cegar de tanto brilho.
Dessa forma, antes de ser abandonado num canto de parede sujo e frio e começar a ser consumido por fungos impiedosos, preciso que saibam de mim, que fui um sapato espetacular, feito com um couro italiano finíssimo, o principal motivo de uma vida longa e saudável. Tenho primos chineses que não vivem nem dois meses. Garanti conforto e maciez aos pés de meu dono; entretanto, nunca fui muito recompensado por isso, pelo contrário, literalmente andei por caminhos tortuosos: lama, calçadas escaldantes e toda sorte de sujeiras que prefiro nem citar e, meu Deus! Me digam quem inventou o tal do chiclete? Os humanos têm câncer, nós temos chicletes, a maior praga que foi inventada. Também tenho trauma mortal de dias chuvosos e de fumantes. Meu dono é um desses e me usa para apagar pontas de cigarros. Poderia odiá-lo por isso, mas quer saber? Minha vida foi chocante, dessas que dariam facilmente um romance ou um conto, por isso o quero tanto. Ah! Tenho um irmão gêmeo. Ele é carrancudo, de poucas palavras. Ainda não absorveu a dura realidade. Está inconformado com a vida, não suporta que tenha sido largado e já anda arquitetando planos para tornar um inferno a vida do novo mocassim. Eu não, estou em paz, tranquilo. E, antes que a podridão me tome, que meu epitáfio seja: Amou cada passo de sua vida.

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