Quando o pé doeu

terça-feira, 27 de janeiro de 2009 , Posted by Danúbio at 09:12

Procurou naquela última gaveta do ármário da cozinha uns cigarros soltos em meio a contas pagas de água e luz. Dinho sempre lhe comprava cigarros soltos, desses de filtro amarelo. Nunca branco. Nem carteiras inteiras. Encontrou três em bom estado. Acendeu e sentou-se. Ana sempre senta-se pra fumar. Num entardecer desses de verão, Ana obrigou-se a fumar. E quando a chama do isqueiro queimou a ponta do cigarro ela soube que não mais seria assim, dessa forma tão crua a vida.
A outra subia o elevador. Trabalhava o dia inteiro numa Livraria ali perto da Presidente Vargas. Vinha a pé pra casa. Sempre. Como precisava, costumava fazer muitas coisas ao mesmo tempo, também pensava muitas coisas ao mesmo tempo e naquele exato momento em que o elevador indicava 4° Andar, ela morava no oitavo, pensava no filho que não vê há anos, na mãe que toma conta do filho em São Francisco do Sul, em como conseguiria tomar banho e se arramar pra ir pra faculdade em 37 minutos e naquela dorzinha fina, quase longe, que subia do seu dedo mínimo do pé e ia até naquele espaço onde acaba o pé e começa a perna. Pensou ainda em como diria a Ana sobre essa dor. Precisava sempre dizer coisas a Ana quando chegava: que o seu chefe é ridículo, que viu uma senhora colocar um livro de auto-ajuda na bolsa, que está pensando em visitar um amigo que não vê a muito tempo, que conheceu alguém, que havia contas pra pagar. Essas coisas vazias que enchem conversas de pessoas também vazias e de espaços também vazios, pensou.
No primeiro ar do apartamento que outra sentiu soube que agora Ana estava sentada no chão da cozinha, próxima à geladeira amarela, fumava um cigarro de filtro amarelo e bebericava um vinho desses medíocres que enchem prateleiras de supermercado, fazia o chinelo de cinzeiro e ouvia baixinho um disco dos Smith. A outra quebrou o momento quando acendeu a luz:
- A vizinha do 804 já es...
- Vou voltar. Sem tirar os olhos da chama do cigarro, Ana disse: vou voltar. Não consigo mais sobreviver a essas quatro paredes emputrecidas.
E a outra sabia que já não eram mais coisas vazias que enchem conversas de pessoas também vazias e de espaços também vazios o que Ana disse. Talvez se tivesse ido direto pra faculdade ou se tivesse se detido mais na conversa com o porteiro ou se Ana tivesse morrido enquanto ela subia o elevador, não teria ouvido a isso. Mas ela estava viva ali, sentada a seus pés, a um daqueles pés que ainda doia, querendo deixar a vida de todos os dias, com a mesma coragem e decisão que lhe falta agora.

Currently have 5 Estiveram aqui...:

  1. Biba says:

    Muito bom, danúbio. Escrito de um modo franco e sensível. Que bom lê-lo!
    Beijos,
    Carpe Diem!!!

  1. Danúbio says:

    Óh, minha Espetacular Garota de Coturnos, quem depois de todo esse viver suportaria passar sem eles?

  1. Danúbio says:

    Biba querida, o prazer que encontro quando escrevo é mesmo prazer que sinto em saber que você leu algo que escrevi. O gostar vem depois, né isso?
    Beijos

  1. Caco says:

    Ela compra cigarros avulsos porque é fumante, mas não gosta de admitir. Ela não admite tanta coisa para si mesma!
    CACO

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